Ação
do Ministério Público de Santa Catarina fez com que Maria das Graças
perdesse a guarda de duas filhas, ambas com menos de 6 anos
Reportagem: Luara Loth, Priscila dos Anjos e
Nícolas David (Colaboração do Coletivo Estopim)
Fotos: Priscila dos Anjos
No
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“Eu
sou Natalina Felipe, moro na Comunidade Quilombola Toca Santa Cruz”.
Com nove autoafirmações como esta foi iniciada a coletiva de imprensa
organizada pelo
Movimento Negro Unificado (MNU) para denunciar aos grupos de mídia independentes de Florianópolis, o
racismo
do Poder Judiciário e do Ministério Público de Santa Catarina contra
Maria das Graças de Jesus, mãe e quilombola, mas que, agora, vive há
quase um ano com saudades das duas filhas caçulas. O evento foi
realizado na sede do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina.
Gracinha, como é chamada por todos que acompanharam sua trajetória, é
analfabeta e conta com a ajuda do MNU para se defender na Justiça e
tentar entender o que levou o Ministério Público de Santa Catarina pedir
a perda do poder familiar da remanescente quilombola.
Em novembro de 2014, Gracinha
perdeu a guarda das duas filhas em um polêmico processo judicial que
atropelou, segundo o MNU, os direitos individuais da mãe, das crianças e
das populações
quilombolas.
Na decisão judicial que retira a guarda das crianças a pedido do
Ministério Público de Santa Catarina, segundo o manifesto do MNU, o
entendimento é de que Maria das Graças é descendente de escravos, sendo
que sua cultura não primava pela qualidade de vida, era inerte em
relação aos cuidados básicos de saúde, higiene e alimentação. A alegação
gerou revolta entre os militantes do movimento negro, antropólogos e
juristas da área dos
direitos humanos.
O MNU escreveu um manifesto denunciando os equívocos do processo e as
afirmações racistas e machistas do texto. O documento circula nas redes
sociais e vem mobilizando mais ativistas ao redor da causa.
Desde então, a mãe não pode
visitar as filhas, que estão abrigadas na Casa Lar Chico Xavier,
localizada no município de Biguaçu. Dentro do abrigo, as meninas não
estão frequentando a escola regular, situação diferente da quando
moravam com a família e estavam matriculadas no ensino básico e em uma
creche de Paulo Lopes. Familiares da ré e outros moradores da comunidade
da Toca compareceram à coletiva de imprensa. As crianças estavam
visivelmente com sono e assistiam ao programa infantil da TV Cultura, Castelo Ratim-bum,
no pequeno aparelho televisor do Sindicato dos Jornalistas. Os olhares e
gestos não escondiam a timidez: apresentaram-se com os olhos colados no
chão ou observando fixamente as unhas roídas. A mobilização para trazer
todos ao evento, mesmo em um dia de tempestade na capital, chamou a
atenção, mas poucos meios independentes estavam presentes.
Maria das Graças, 47 anos
Nas poucas vezes em que falou, sua voz
soou doce, e não infantilizada, como foi caracterizada no processo
judicial. Gracinha evitava falar por orientação de Maria Lourdes Mina,
coordenadora do MNU: estaria muito abalada para falar das acusações que a
descrevem como deficiente mental, promíscua, incapaz de manter
condições sanitárias básicas para criação dos filhos e indigente. Mesmo
mantendo o silêncio por boa parte da coletiva, quando a porta-voz do
MNU, Lurdinha Mina errou o número de policiais militares que foram à
casa de Gracinha para levar as crianças, a quilombola discretamente, mas
com segurança, levantou dois dedos para fazer a correção: eram dois, e
não três agentes armados.
Em uma
das vezes em que foi visitada por uma assistente social do município,
Gracinha escutou a pergunta: “Quantos homens você coloca para dentro de
sua casa?”. Ela respondeu, indignada, mas quase com humor: “Por acaso,
eu vou à casa da senhora e pergunto uma coisa dessas? Isso não é da tua
conta”. A presidente da Associação de moradores da Toca Santa Cruz,
Natalina Felipe, usou o diálogo como uma evidência da inteligência de
Maria das Graças, e que contrasta com o retrato desenhado pela Justiça.
No laudo da assistente, a vida privada da quilombola é adjetivada com um
termo um tanto quanto subjetivo: “promíscua”.
O MNU, junto à associação
Cultural Palmares, solicitou que um antropólogo acompanhasse o caso,
procedimento previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
quando os sujeitos envolvidos são integrantes de comunidades
tradicionais. A a Promotora de Justiça defende que a família substituta
das crianças não seja uma família quilombola, pois não reconhece as
meninas como remanescentes e disserta: “Essas colocações indicam que
essas previsões legais referentes aos quilombolas, na verdade,
constituem um retrocesso nos princípios e ideais norteadores da proteção
integral da criança e do adolescente[…]” Além de negar a solicitação e a
origem quilombola das crianças, a juíza também contestou a
autodeclaração de Maria das Graças, que se identifica como quilombola,
com o argumento de que ela viveu fora da comunidade por certo período e
que a Toca Santa Cruz não possuía qualquer documentação que atestasse
que os moradores são remanescentes quilombolas.
“Como
dito, não se está aqui discutindo a cultura e as condições sociais
porque vivem os quilombolas, mas tão somente, a saúde mental de uma
mãe, que a princípio, não detém as mínimas condições de criar e educar
corretamente suas filhas e que não mantém uma estrutura familiar que o
faça por si. Em razão disto, entendo desnecessária a intervenção de um
antropólogo,” escreveu a juíza em resposta às apelações da quilombola
que buscava anular o processo, apontando as irregularidades quanto à
violação dos direitos dos povos originários e tradicionais.
AToca
Santa Cruz está sob estudo de um Grupo de Trabalho instaurado pelo
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) com o
intuito de produzir um laudo para embasar uma posterior demarcação
terras e, depois de julgamento no Poder Legislativo, a homologação pela
Presidente da República. Mesmo que a comunidade ainda não possua o
reconhecimento de suas terras tradicionais, a Constituição Brasileira
garante que os indivíduos possuem o direito inalienável à autodeclaração
e à autodeterminação quanto à sua identidade étnica e cultural.
Segundo o Estatuto da Criança
e do Adolescente, quando se trata de crianças e adolescentes
quilombolas, a família substituta deve ser também quilombola, para
assegurar o direito delas, mesmo na infância, à própria cultura. Mas
este não foi o entendimento da juíza que sustentou no processo a
impossibilidade de que qualquer outra família da comunidade da Toca
pudesse ter a guarda das crianças. O pai das crianças também foi
considerado inapto a cuidar das filhas.
Para Maria das Graças, não
foi oferecida assistência da Defensoria Pública do Estado, segundo a
porta-voz do MNU, Maria de Lourdes Mina. Diante disso, uma advogada
representa em defesa de Maria das Graças, mas nem ela pode ter contato
com as crianças por conta da decisão judicial. A ré alega que apesar das
visitas do Conselho Tutelar (sempre hostis), só ficou sabendo da
existência do processo depois de que a representante do conselho,
acompanhada de dois policiais militares, foram à sua casa e mentiram que
estavam levando as meninas ao médico, evitando assim uma reação mais
incisiva da mãe.
De acordo com o processo, as
crianças demonstram afeto por Gracinha, mas esse sentimento estaria
ligado ao quadro de deficiência mental ao qual está submetida toda a
família. No segundo laudo da assistência social, um dos três que foram
produzidos, a funcionária do Estado levanta uma versão diferente sobre a
suposta omissão de Gracinha quanto a suas responsabilidades: as meninas
frequentam aulas de balé, a professora tece elogios sobre as crianças,
as vacinas estão em dia, além disso, a mãe teria o costume de levá-las
ao posto de saúde com assiduidade incomum. Segundo representantes do
MNU, o abrigo recomendou que as crianças fossem devolvidas à mãe. O
motivo é que “as meninas sentem saudades, estão tristes, porque a amam”.
Em tramitação na justiça, o
processo aguarda resposta ao recurso feito pela advogada à decisão do
juiz de colocar as meninas no cadastro nacional de adoção para romper
com a perpetuação do subdesenvolvimento intelectual que assola a família
há gerações. Em uma reunião com a coordenação do movimento, o juíza
teria dito que com a família substituto, as crianças esqueceriam a mãe a
comunidade. A juíza tem até o dia 19 de setembro para definir o futuro
da família de Gracinha. Enquanto isso, o Movimento articula um ato pela
devolução imediata das meninas.
Nos últimos meses, Maria de
Lourdes Mina recebeu semanalmente ligações desesperadas de Gracinha
pedido ajuda para reagir às agressões de uma vizinha e à saudade das
filhas, que desencadeou um quadro de depressão. Lurdinha fala com a
amiga ao telefone: “Gracinha, não responde, não responde. Finja que não
escutou. É só para te provocar”, sabendo que a posição da mãe é
vulnerável demais para que ela tenha direito de reagir.
Manifesto do MNU descreve o caso como mais uma manifestação do racismo estrutural
A destituição do poder
familiar não atinge apenas a família de Maria das Graças, que ao lado de
suas filhas, são as pessoas que mais sofrem com a perda. A revolta com a
postura do poder municipal e com as ações consideradas arbitrárias da
Justiça afetam também toda a comunidade que recebe apoio do movimento
negro. Os militantes do MNU travaram contato com a comunidades durante a
luta pela demarcação e respeito aos direitos das populações
quilombolas. Desde a retirada das crianças, o movimento acompanha a
situação de Gracinha e sua família com o objetivo de ajudá-la a
recuperar a guarda de suas filhas e não criar um precedente de violação
de direitos contra a dignidade das famílias quilombolas.
No entendimento da Promotora
de Justiça, a Toca Santa Cruz não é reconhecida oficialmente como um
quilombo. O MNU encaminhou ao MPSC um documento do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA) que atesta que a comunidade Toca
Santa Cruz é composta por remanescentes quilombolas.
Outros aspectos
denunciados pelas militantes são os crescentes episódios de racismo
protagonizados por vizinhos da comunidade. Vanda de Oliveira Gomes
Pinedo, professora da rede estadual, militante do MNU, contou,
emocionada, sobre as ofensas que escutava sobre os moradores da Toca,
quando dava aulas na região de Paulo Lopes: “Os brancos se referiam a
eles como os negrinhos da Toca”. A professora, indignada com o episódio,
também contesta a imparcialidade da Justiça no caso: “Todos os dias
converso com pais que não sabem assinar o próprio nome e nenhum deles
perdeu a guarda dos filhos por causa disso”. Já Natalina Felipe,
presidente da associação da comunidade, denuncia os xingamentos
constantes que Maria das Graças escuta rotineiramente da vizinha branca:
“Louca, negra macaca, fedida… Ela não pode ver a Gracinha fora de casa e
já começa a xingar, mas se ela reage, ela é a louca”.
No manifesto do movimento,
está a denúncia de que há cerca de três anos Gracinha, o filho mais
velho e as duas meninas pequenas foram desalojadas e reinstaladas em um
terreno da prefeitura de Paulo Lopes que fica dentro de um cemitério
municipal e fora da comunidade da Toca, além de não possuir saneamento
básico. A casa foi construída com recursos da Caixa Econômica Federal,
mas apresenta uma série de problemas estruturais, em relação aos quais
Gracinha pouco pode fazer por conta de sua condição financeira precária:
“Ela não tem culpa de ser pobre e viver um local em condições
sanitárias precárias”, defende Vanda Pinedo.
Natalina Felipe conta que há
várias gerações as mulheres da família de Gracinha são obrigadas a
recorrer e aceitar a caridade dos moradores da cidade que doam roupas,
alimentos e auxílio para que, por exemplo, a mãe solteira compre um
botijão de gás e não deixe os filhos passarem fome. Maria das Graças
também teve dificuldades com a pensão das filhas, o ex-marido por um
período parou de pagar o valor necessário ao sustento das meninas.
Aconselhada por conhecidos, Maria das Graças recorreu à Justiça para
assegurar o direito.
Para Vanda Pinedo,
a relação de descaso com a situação de vulnerabilidade de Maria das
Graças é só mais um exemplo da falta de políticas públicas do município
para a comunidade da Toca, historicamente marginalizada e abandonada
pela prefeitura.
Enviado pelo coletivo Maruim para o Medium
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