19 de dezembro de 2013

Herança indígena




Pintura de Debret retratando cerimônia de dança dos Puri

Ao contrário dos Goitacá, os Puri — que vieram de São Paulo fugindo das "entradas e bandeiras" — sobreviveram ao domínio colonial, assimilando a cultura dos colonizadores  e perdendo sua identidade indígena

O fracasso dos colonizadores portugueses em relação aos índios Goitacá — praticamente dizimados por não aceitarem o seu subjugo — não se repetiu em relação a outra população indígena que viveu no Norte/Noroeste Fluminense: os índios Puri. Nômades, os índios Puri iniciaram no século XVII uma longa jornada pelo vale do Rio Paraíba do Sul, com o objetivo de escapar das “entradas e bandeiras” — que aprisionavam índios para o trabalho compulsório na exploração de ouro. Deixaram São Paulo e acabaram se fixando na bacia inferior do Paraíba, entre os rios Pomba, Negro e Muriaé. 
De acordo com o estudo “Diversidade étnica dos indígenas na bacia do baixo Paraíba do Sul. 

Representações construídas a partir da Etnohistória e da Arqueologia”, da historiadora Simonne Teixeira, as principais fontes históricas acerca deste período estão nos relatos dos viajantes e naturalistas estrangeiros que estiveram na região ao longo do século XIX. Muitos deles tiveram contato direto com os índios, cuja estrutura social já se encontrava muito fragmentada devido à interferência dos colonizadores. Freis capuchinhos italianos comandavam dois aldeamentos importantes na região: São José de Leonissa (atualmente São Fidélis) e Aldeia da Pedra (atualmente Itaocara), e muitos indígenas mantinham relações de trabalho com os colonizadores portugueses.

— No entanto, os relatos de naturalistas como Maximiliano e Burmeister, que estiveram por esta região em meados do século XIX, nos dão conta de que os índios Puri ainda seguiam nômades e com um reduzido conjunto de pertences, somente o suficiente para a sua sobrevivência no ambiente de densa vegetação em que viviam — diz Simonne, que atua no Laboratório de Estudo do Espaço Antrópico (LEEA) do Centro de Ciências do Homem (CCH) da UENF.

Segundo Simonne, o nomadismo dos índios é associado pelos autores a um paupérrimo conjunto de pertences. Burmeister, por exemplo, relata que “a choça do Puri se constituía de leves habitações, feitas de folhas de palmeira e assemelhando-se a grande gaiola de pássaros”.  Maximiliano escreve que os índios Puri possuíam poucos utensílios e que abandonavam suas moradas, as mais primitivas do mundo, “sem saudades, quando a região circunvizinha não mais lhes garante alimentos suficientes”. 

— Com o processo de deflorestamento para a lavoura do café, os índios foram perdendo espaço. Muitos passaram a trabalhar nas fazendas, como diaristas, sobretudo no corte de árvores e carregamento de lenha pelo rio. O pagamento era irrisório: às vezes recebiam em troca tabaco, aguardente ou tecidos coloridos. Há muitos relatos de índios vivendo em estado de miséria — afirma, acrescentando que, ao final do século XIX, os índios “desaparecem” por completo da região, o que leva a crer que foram assimilados como parte da sociedade brasileira.

Segundo Simonne, o fato de a população indígena brasileira não ter deixado fontes textuais ou iconográficas contribuiu, durante muito tempo, para o pouco interesse pela história dos habitantes primitivos do Brasil. Francisco Adolfo Varnhagen chegou a afirmar que não haveria história para os índios, mas apenas “etnografia”, alegando que eles estariam “na infância da humanidade, em estado de barbárie e de atraso”. Para os historiadores antigos, os índios eram “seres terríveis, meio-feras, meio-gentes, sem lei, nem fé e nem rei, entregues a toda sorte de vícios e luxúria”.

— Esse modo de ver os índios como povos detentores de uma bestialidade primitiva pertencia ao ideário português, já claramente manifestada no processo de conquista e colonização da África. Para os primeiros historiadores, a história era movida pelo avanço da civilização europeia, enquanto os índios eram “meros objetos da ciência”, podendo, “quando muito, lançar alguma luz sobre as origens da história da humanidade, como fósseis vivos de uma época muito remota”  — diz Simonne.

Os naturalistas e viajantes foram, portanto, os principais construtores das representações sobre os índios. Até o século XX, a historiografia brasileira desprezou os indígenas, ignorando sua existência e a convivência entre eles e os brancos ao longo do processo de colonização e avanço para o interior. 

— Certamente a pouca tradição acadêmica no Brasil, com a ausência de universidades até a transferência da Corte portuguesa, contribuiu para o parco conhecimento da população. A história dos índios no Brasil, até os anos 1980, foi basicamente uma crônica de sua extinção. O melhor seria dizer: a crônica de um povo que teimava em não desaparecer.




Fulvia D'Alessandri



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Equipe NEABI